segunda-feira, setembro 03, 2007

TERRA DE RAINHAS


Com a devida vénia um artigo de opinião publicado no jornal Diário de Notícias, de 16 de Agosto de 2007, intitulado TERRA DE RAINHAS, da autoria da Dra. Maria José Nogueira Pinto, jurista

" Óbidos fez parte da geografia da minha infância. Foi, provavelmente, a primeira incursão "erudita" em terras portuguesas, incursões que fiquei a dever às "voyages avec ma tante", uma tia especialmente talentosa que contava a História como a grande narrativa de todas as histórias com que se entretêm as crianças, pairando entre o real e o lúdico, o gosto da cronologia e o fascínio da intemporalidade.Óbidos, como se sabe, presta-se a isso mesmo, ao ter atravessado, imperturbável e imperturbada, séculos de vivência humana, protegida das malfeitorias próprias e todas as formas de exercício do poder, graças ao bom senso e teimosia de alguns.Recordo-me bem dessa terra "dormida", as igrejas riquíssimas mas penumbrosas, os quadros da Josefa de Óbidos escurecidos por falta de restauro, o casario fiel à sua traça primitiva mas já com evidentes sinais de decadência, as muralhas e o castelo ameaçados, um comércio esquecido no tempo, indiferente tanto ao nativo como ao turista ocasional, o artesanato pobre e, para além da pousada, uma hotelaria e uma restauração incipientes.Ali mesmo ao lado, Caldas da Rainha era uma cidade animada por cafés, esplanadas, comércio, mercados, museus, livrarias, as termas, o parque com os seus cortes de ténis, a fábrica do Bordalo e as cavacas.No pós-25 de Abril acompanhei, como residente sazonal desta região, o percurso das duas terras. Mais tarde fui, com orgulho e gosto, deputada à Assembleia Municipal das Caldas. A comparação entre Caldas e Óbidos era recorrente e não escondia uma certa competição. Dizia-se que em Óbidos pouco se estragava porque pouco se fazia e contrapunha-se a aparente dinâmica de desenvolvimento das Caldas. Esta discussão estéril escondia o essencial: o desafio que já então se colocava a muitos concelhos de Portugal, traduzido na equação complexa de abrir aos novos tempos, preservando as raízes e reforçando a identidade distintiva de cada um.Também aqui se podia aplicar, com sabedoria, a impressionante máxima do príncipe de Salina, o Dom Fabrizio do Gattopardo de Tomasi di Lampedusa: "Se queremos que tudo permaneça como está, é preciso que tudo mude."No caso de Óbidos, a abertura às exigências dos novos tempos constituía um risco manifesto, só contornável com rasgo e visão acrescidos, dadas as exigências específicas de um território marcado pela força da sua História e a riqueza do seu património. E sabemos bem, é visível por todo o País, o peso das feridas provocadas por um deturpado conceito de desenvolvimento e uma má interpretação da modernidade: turismo massificado, lixo, excesso de ruído, trânsito e mesmo algum vandalismo consentido como um inevitável preço do progresso.Mas não tem porque ser assim. Em Óbidos, o que aconteceu nos últimos anos está entre o milagre e o study case, com resultados extraordinários: um terra igualmente bonita e harmoniosa, um espaço reforçado na salvaguarda do seu património que convive, agora, com as pessoas, residentes e visitantes, portugueses e estrangeiros, das mais diversas origens e condições, que ali afluem pelos mais variados motivos. E é por isto mesmo que o comércio se tornou atractivo, com horários alargados, uma hotelaria e uma restauração que rivalizam em qualidade, e a atractividade de Óbidos se desmultiplica em programas ambiciosos e bem sucedidos de animação cultural, para todos os públicos, desde feiras medievais a semanas de ópera, desde a encenação da Semana Santa à festa do chocolate, desde exposições a concertos.Infelizmente, Caldas manteve-se nesse aparente desenvolvimento, assente numa gestão urbana de obra pública duvidosa e empreendimentos imobiliários. As enormes potencialidades das Caldas e das suas gentes estão embotadas por uma condução sem estratégia nem rasgo da sua edilidade. Valem-nos os que ainda lutam, mantendo nichos de qualidade. Esperemos que resistam até que cheguem melhores dias. Esta terra merece-o. E eu sei que sim.".

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